O mito de Aracne
- Espaço Teares
- 1 de ago. de 2018
- 4 min de leitura
Atualizado: 26 de jun. de 2023

Nós sempre podemos recorrer aos mitos, quando pretendemos explicar algo que nossa cognição talvez não consiga alcançar. Podemos também utilizá-los para compreender a diversidade das relações humanas. Os mitos abrem possibilidades para entendimento do humano, na sua atemporalidade, na sua finitude. Alhures, alguém disse que eles estão presentes no cotidiano. De alguma forma, somos os heróis e as deusas de nossa própria história.
Nossa proposta é abrir um campo de diálogo aqui no Espaço Teares para pensar as articulações entre a Filosofia, a Psicanálise e a Mitologia. Para nós, nada mais adequado do que retomar o mito de Aracne, porque o universo de nossas investigações inicia-se com as histórias contadas. Os textos/contextos são construídos a partir das falas. Como um tecido, em que suas tramas e fios se entrelaçam.
A imagem da tecelã é frequentemente usada nas artes e na literatura. O Mito de Aracne tem o mesmo sentido que tecer redes, bordar e contar as histórias ouvidas, contar as próprias histórias, que são na verdade reconstruções.
Na nossa cultura a arte da tecelagem e do bordado está presente nos rituais: como no casamento, no enxoval do casal ou do futuro bebê. Esses, muitas vezes, são longamente trabalhados pelo entorno familiar.
Conta-se que a confecção de tapetes no Oriente obedece a uma regra: os tapeceiros sempre cometem um erro, deliberadamente, porque a perfeição é um atributo dos deuses.
Segundo Mircea Eliade, a criação do universo resulta de muitas atividades técnicas, talhar a madeira é uma delas. A tecelagem aparece como símbolo recorrente da criação, tanto do universo como na vida humana. O próprio cosmos é concebido como um tecido, uma enorme rede (ELIADE, 2002:112). Na Grécia temos as tecelãs do destino, as Moiras: Cloto (a que fia) segura o fuso e puxa o fio da vida; Láquesis enrola o fio e sorteia o nome de quem vai morrer. Átropos (a inflexível) corta o fio da vida.
FIAR, TECER, NARRAR E CRIAR.
Esses verbos na língua portuguesa estão inter-relacionados na construção textual, seja na escrita seja na oralidade. É comum recorrermos a expressões: “fio da meada”, “ponto por ponto”, “linha de raciocínio”, a “trama do texto”.
“Às mulheres não foi dado durante séculos o direito de escrever. Elas traçavam sinais de criação, usando linhas atravessadas em finos orifícios, nos teares, manipulando pequenos instrumentos de fabricação caseira. Com isso, transfiguravam o mundo, escrevendo signos que substituíam as palavras” (Almeida, 2006)
Tanto no mito como na arte, a tecelagem é uma narrativa. No mito de Aracne o que desperta a ira da deusa, além de seu orgulho desmedido, é o tema de seu bordado, que retrata as aventuras amorosas de Zeus.
Aracne era filha de Idmon, um tintureiro que nasceu na Lidia. A jovem era famosa por toda a Grécia por suas habilidades em contar histórias através do bordado e da tecelagem. Conta a lenda que até as ninfas do campo admiravam seus belos trabalhos, sua habilidade era tamanha que ela acreditava ser discípula de Atena, a deusa da sabedoria e das tecedeiras.
Muito habilidosa, queria que sua arte fosse reconhecida por seu próprio mérito e não que houvesse recebido de qualquer um dos deuses, seu orgulho era proporcional ao seu talento.
A deusa em sua sabedoria aparece para a jovem disfarçada de anciã e a aconselha ser modesta.
“Busque entre os mortais a fama que desejar, mas reconheça a posição da deusa”.
Enclausurada no seu orgulho, desprezou a anciã e lhe respondeu com insultos, desafiando-a para uma competição. Despertando assim sua cólera, Atena aceitou o desafio.
Na disputa, a divina Atena borda em seu tapete os doze principais deuses do Olimpo, em toda sua majestosa grandeza. Com o intuito de mais uma vez advertir Aracne, borda, nos quatro cantos do tapete cenas que mostravam o que havia acontecido aos mortais que ousaram desafiar os deuses. Aracne, em sua insolência, representou os amores desonrosos de Zeus. Foi tecendo diversas cenas em que o deus aparece disfarçado ou toma a forma de um animal: Zeus, sob a forma de touro, arrebatando Europa; sob a forma de águia, abordando Astéria; sob a forma de cisne, conquistando Leda; sob a forma de sátiro, fazendo amor com Antíope; fazendo-se passar por Anfitríon para seduzir Alcmene, mãe de Heraclés (Hércules); como o pastor que fez amor com Mnemosine, mulher-titã; e, ainda, conquistando Egina, Deméter e Danae, disfarçado, respectivamente, de chama, serpente e chuva de ouro. No afã de "tricotear" sua espantosa obra, Aracne incluiu ainda os amores de Posseidon, Apolo, Dionísio e Cronos. A obra era perfeita, mas Atena encolerizou-se com o insulto às divindades do monte sagrado, tomou sua lança, rasgou o maravilhoso tapete e ainda golpeou a jovem. Mas Atena, não permitiu que Aracne morresse e a converteu em aranha condenada a tecer por toda eternidade.
E não seria esse nosso destino também? Estar sempre contando e recontando nossas histórias, para que de alguma forma possamos bordar nosso tapete, a vida?
Nádia Vieira
Psicóloga do Espaço Teares
Pesquisadora CEFHI /Unifesp.
Referências Bibliográficas.
ALMEIDA, L. Genealogias femininas in JARDIM, Rachel. O penhoar chinês.
Disponível em: www.ucm.es/info/especulo/numero24/genealog.htm.Acessado em 14/05/2012
BRANDÃO, J. Mitologia grega. Vol.1. Petrópolis: Vozes, 1991.
ELIADE, M. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2001.
MACHADO, A. M. O Tao da teia- sobre textos e têxteis. Disponível em WWW.htp.scielo.br/php